24.3.09

Casos do acaso

Havia um cachorro. Ele era marrom, porte médio, os olhinhos tristes, a verdadeira carinha de cão sem dono. Mas ele tinha coleira, e estava preso em cima de um muro alto. Parecia desamparado, parecia algo confuso. Parecia querer descer. Normalmente ele se apoiava nas quatros patas - o muro não era tão estreito - quando passava alguém, olhando com olhos negros, de quem pedia ajuda. Ele sempre estava ali, mas ninguém nunca notou. Exceto por uma menina.
Ela era negrinha, magricela, os olhos brilhantes. Saia curta, os pés calçados com chinelos, os cabelos puxados para trás por um arco. Levava um biscoito na mão e olhava com desconfiança pro cachorrinho. Esse respondia ao seu olhar, a pureza de cachorro com a pureza de menina.
E então ela caminhou até o muro, calculou seus passos, fez força e trepou num canteiro. Não conseguia ficar de pé, ainda desequilibrando, o chinelo derrapando nas paredes finas de concreto. Mas ela não desistiu. E o cachorrinho a olhava, como se em seu olhar pudesse transmitir algum tipo de força, como se estivesse dizendo "você consegue". E ele estava mesmo dizendo isso, ela conseguiria escutar não fosse o barulho dos carros.
A menina enfim conseguiu se apoiar no muro, a carinha retorcida de medo, os dentes pressionados no lábio inferior, retrato de todo o seu esforço. Ficou de pé, estendeu o braço com um biscoito, o único que tinha. E o cachorrinho esticou o pescoço, pegou o biscoito da mão da menina, saboreou-o lentamente, lambendo os dedinhos finos e pretos. A menina então sorriu, um sorriso largo de missão cumprida. Eles estavam felizes.
Eu, presenciando essa cena, não pude deixar de pensar que ainda a simplicidade desarma a gente, faz com que a pressa não mais importe. Eu parei de andar, eu observei com cuidado cada movimento. Eu sorri junto com o cachorro e com a menina, e meu coração se encheu de ternura. Eu acreditei em milagres, eu acreditei na vida.